O teu marido traiu-te com uma aluna. Estavas visivelmente transtornada e tentaste usar-me como instrumento de vingança. Sabias que eu era casado mas que gostava muito de ti. Já te havia dito que, por uma questão de princípios, só conseguiria trair a mãe dos meus filhos quando soubesse que ela me era infiel. Ficaste magoada com a resposta. Continuaste a insistir. Sabia que gostavas muito de mim e tu sabias que eras correspondida. Lutei e sofri. E tive a ideia infeliz (?) de te oferecer este poema quando me sugeriste fugirmos para os Alpes suiços.
Inexorável Rotina
Juntámos os trocos
e na bilheteira,
artificialmente perfumada,
do Aeroporto da Portela,
comprámos duas passagens
de condição : sem regresso !
Nos estofos cheirando a veludo
daquele Jumbo da Swissair
fundimos os nossos cabelos,
ligámos as nossas mãos
e adormecemos sorrindo...
O poço de ar despertou-nos !
Olhámo-nos demoradamente
em profundo silêncio.
Sorrimos novamente
com cumplicidade
na maroteira da fuga,
ou melhor, da aventura;
beijei ao de leve a tua testa
enquanto os teus olhinhos
se iam fechando lentos
e as nossas quatro mãos
se apertaram até doer.
A cabana velha de madeira
ali plantada nos Alpes,
toda coberta de branco,
albergou no seu interior
o calor e o doce odor
de lenha seca queimada
e aquele fogo crepitante
atraíu-nos ao tapete macio
peludo e envolvente.
Fizemos parar o tempo
despindo-nos de tudo:
não somente de roupas
mas de ideais e ideias;
fizemos cinzas na lareira
com os nossos preconceitos
e cortámos ali mesmo, com o lume,
os novos cordões umbilicais.
Renascemos sozinhos
sem nada na lembrança,
como dois bebés:
amnésia total.
Teus cabelos soltos
no tapete espalhados
e esses teus lindos olhos
brilhantes sem usar sombras;
os teus lábios naturais
torneados sem baton;
teus seios muito pequenos
espalmados sobre o teu peito
quando te recostaste
e ficaste meio-enterrada
naquele chão de lã tão fofa;
o perfeito vê do teu busto
e aquela rigidez escultural
de ancas e pernas torneadas
a terminarem em pés de cera.
Entrelaçámos os nossos corpos
mas só te apertei cuidadoso
ao sentir os teus tornozelos
avisando a minha nuca
e aí, sim, todo eu tremi
com aquela vontade incontrolável
de sermos apenas um...
Mas pesquisei no teu olhar,
nos cantos da tua boca,
no ondular das tuas ancas
se seria tua vontade,
não querendo possuir
mas sim compartilhar
dum acto assaz sublime
em que só a dois há amor;
e quando senti que me amavas
então sim amámo-nos.
Foram tantos os dias,
incontáveis as noites
vivendo uma paixão ardente.
Pensámos conhecer-nos bem
por fora e mesmo por dentro...
...Depois veio a fome
e a sede com ela
e todas as necessidades básicas:
a falta da lenha;
a cabana que arrefeceu;
as cinzas amontoadas
numa lareira em rescaldo.
Derreteu-se a neve.
Veio o buzinar estridente
do carro que trás o pão
muito cedo pela manhã.
E acordámos assustados
com o bater ruidoso
do cobrador da água e da luz
e outros, ainda outros
que por lá iam passando.
A nossa roupa e a loiça
tornaram-se cúmplices
quando se amontoaram: sujas !
Era preciso lavar !
Era urgente tratar do lixo !
Era, enfim, preciso sair,
abandonar o ninho de amor,
ir à vila fazer compras.
E veio a amigdalite a exigir
o tratamento mais apropriado.
E, matreira, veio uma contrariedade
e mais outra, ainda outra.
Os nervos que se instalaram
teimosos à flor da pele.
Beijámo-nos e até jurámos
tudo isto superar
acreditando na protecção
do nosso amor infindável (!?)
Mas a rotina forçou a entrada
até p' las frestas das portas
e p' los rasgos das janelas;
desceu abrupta a chaminé,
levantou pó e instalou-se
mesmo à nossa revelia.
Tentámos formas de luta,
discutimos os processos
de a poder exorcizar.
Apeteceu-me fazer amor
e estavas com dores de cabeça
ou então muito cansada;
ou quando foste tu a querer
as minhas preocupações
traíram-me a virilidade...
Juntámos os trocos
e na bilheteira
daquela gare tão escura
dos Caminhos de Ferro
comprámos duas passagens
de condição: sem regresso !
No compartimento frio e negro
daquela 2ª. Classe
fundimos os nossos cabelos,
ligámos as nossas mãos
e as nossas desilusões
e adormecemos chorando...
Chegámos a Santa Apolónia,
sentimos o cheiro do Tejo
e aquele olhar vivido e crítico,
o sorriso marcadamente sarcástico
da tão viajada e vivida Lisboa,
cidade velha que nos viu partir
- cheios de ilusões - da outra ponta
e que nos veio receber
engalanada em gaivotas
que pareceram piar do alto:
- Que ingénuos ! Que ingénuos !
Voltou o tempo a parar.
Olhámo-nos tristes,
imóveis, olhos nos olhos.
Beijei, terno, a tua testa
e a desilusão tão patente
nos meus lábios comprimidos,
no teu sorriso apagado.
Lá ao fundo, ar de cansado,
poisado na ponte de Abril
parecia o Sol repousar
na sua viagem descendente.
Voltámos a procurar, contando-os,
os cada vez mais raros trocos.
Teimámos em comprar ilusões:
perguntámos se ainda havia tempo
de apanhar aquele Sol.
E um taxista - velho e sábio -
recusou aquela corrida.
Passou as suas mãos rijas
pelo alto das nossas cabeças
e, sorrindo com malícia,
aconselhou-nos outra estrela,
de preferência cadente,
pois aquela ali: o Sol
voltava sempre todos os dias
inexoravelmente...
1994
Inexorável Rotina
Juntámos os trocos
e na bilheteira,
artificialmente perfumada,
do Aeroporto da Portela,
comprámos duas passagens
de condição : sem regresso !
Nos estofos cheirando a veludo
daquele Jumbo da Swissair
fundimos os nossos cabelos,
ligámos as nossas mãos
e adormecemos sorrindo...
O poço de ar despertou-nos !
Olhámo-nos demoradamente
em profundo silêncio.
Sorrimos novamente
com cumplicidade
na maroteira da fuga,
ou melhor, da aventura;
beijei ao de leve a tua testa
enquanto os teus olhinhos
se iam fechando lentos
e as nossas quatro mãos
se apertaram até doer.
A cabana velha de madeira
ali plantada nos Alpes,
toda coberta de branco,
albergou no seu interior
o calor e o doce odor
de lenha seca queimada
e aquele fogo crepitante
atraíu-nos ao tapete macio
peludo e envolvente.
Fizemos parar o tempo
despindo-nos de tudo:
não somente de roupas
mas de ideais e ideias;
fizemos cinzas na lareira
com os nossos preconceitos
e cortámos ali mesmo, com o lume,
os novos cordões umbilicais.
Renascemos sozinhos
sem nada na lembrança,
como dois bebés:
amnésia total.
Teus cabelos soltos
no tapete espalhados
e esses teus lindos olhos
brilhantes sem usar sombras;
os teus lábios naturais
torneados sem baton;
teus seios muito pequenos
espalmados sobre o teu peito
quando te recostaste
e ficaste meio-enterrada
naquele chão de lã tão fofa;
o perfeito vê do teu busto
e aquela rigidez escultural
de ancas e pernas torneadas
a terminarem em pés de cera.
Entrelaçámos os nossos corpos
mas só te apertei cuidadoso
ao sentir os teus tornozelos
avisando a minha nuca
e aí, sim, todo eu tremi
com aquela vontade incontrolável
de sermos apenas um...
Mas pesquisei no teu olhar,
nos cantos da tua boca,
no ondular das tuas ancas
se seria tua vontade,
não querendo possuir
mas sim compartilhar
dum acto assaz sublime
em que só a dois há amor;
e quando senti que me amavas
então sim amámo-nos.
Foram tantos os dias,
incontáveis as noites
vivendo uma paixão ardente.
Pensámos conhecer-nos bem
por fora e mesmo por dentro...
...Depois veio a fome
e a sede com ela
e todas as necessidades básicas:
a falta da lenha;
a cabana que arrefeceu;
as cinzas amontoadas
numa lareira em rescaldo.
Derreteu-se a neve.
Veio o buzinar estridente
do carro que trás o pão
muito cedo pela manhã.
E acordámos assustados
com o bater ruidoso
do cobrador da água e da luz
e outros, ainda outros
que por lá iam passando.
A nossa roupa e a loiça
tornaram-se cúmplices
quando se amontoaram: sujas !
Era preciso lavar !
Era urgente tratar do lixo !
Era, enfim, preciso sair,
abandonar o ninho de amor,
ir à vila fazer compras.
E veio a amigdalite a exigir
o tratamento mais apropriado.
E, matreira, veio uma contrariedade
e mais outra, ainda outra.
Os nervos que se instalaram
teimosos à flor da pele.
Beijámo-nos e até jurámos
tudo isto superar
acreditando na protecção
do nosso amor infindável (!?)
Mas a rotina forçou a entrada
até p' las frestas das portas
e p' los rasgos das janelas;
desceu abrupta a chaminé,
levantou pó e instalou-se
mesmo à nossa revelia.
Tentámos formas de luta,
discutimos os processos
de a poder exorcizar.
Apeteceu-me fazer amor
e estavas com dores de cabeça
ou então muito cansada;
ou quando foste tu a querer
as minhas preocupações
traíram-me a virilidade...
Juntámos os trocos
e na bilheteira
daquela gare tão escura
dos Caminhos de Ferro
comprámos duas passagens
de condição: sem regresso !
No compartimento frio e negro
daquela 2ª. Classe
fundimos os nossos cabelos,
ligámos as nossas mãos
e as nossas desilusões
e adormecemos chorando...
Chegámos a Santa Apolónia,
sentimos o cheiro do Tejo
e aquele olhar vivido e crítico,
o sorriso marcadamente sarcástico
da tão viajada e vivida Lisboa,
cidade velha que nos viu partir
- cheios de ilusões - da outra ponta
e que nos veio receber
engalanada em gaivotas
que pareceram piar do alto:
- Que ingénuos ! Que ingénuos !
Voltou o tempo a parar.
Olhámo-nos tristes,
imóveis, olhos nos olhos.
Beijei, terno, a tua testa
e a desilusão tão patente
nos meus lábios comprimidos,
no teu sorriso apagado.
Lá ao fundo, ar de cansado,
poisado na ponte de Abril
parecia o Sol repousar
na sua viagem descendente.
Voltámos a procurar, contando-os,
os cada vez mais raros trocos.
Teimámos em comprar ilusões:
perguntámos se ainda havia tempo
de apanhar aquele Sol.
E um taxista - velho e sábio -
recusou aquela corrida.
Passou as suas mãos rijas
pelo alto das nossas cabeças
e, sorrindo com malícia,
aconselhou-nos outra estrela,
de preferência cadente,
pois aquela ali: o Sol
voltava sempre todos os dias
inexoravelmente...
1994
10 comentários:
Gostei muito da sua poesia. Obrigada pela força que vc me deu no meu Blog. Será que vc poderia emprestar-me o seu poema que fala de Tristão e Isolda para que eu o insira no próximo número da galeria já que o filme, de 1981, é sobre Tristão e Isolda? Sempre publico um poeta português e já estava em falta e vc veio bem a calhar. Responda-me, por favor.
Um abraço,
Renata
É meu amigo...Os sonhos, devem ficar no lugar dos sonhos...Querer traze-los para a realidade, quase nunca dá certo...
Seu poema, quase conto é muito bom! Prendeu-me a atenção...
Beijos de luz e o meu carinho!
Olá Renata
O poema é seu! Pudera eu dar-lhe tudo o que neste momento mais deseja.
Muita força nesta hora difícil.
Não encontro palavras para lhe agradecer neste momento. Estou deveras emocionado.
Beijinhos
António
Olá, Zélia
Que visita tão boa. A menina hoje foi "muito má" para mim. Normalmente só choro quando ouço a "Avé Maria" de Schubert.
Beijo com muita ternura.
António
António
Os sonhos fazem parte da realidade e quem os recusa não sabe que "o sonho comanda a vida". Não vale a pena muita sensatez, como alguém disse "A loucura vem de Deus e a sensatez vem do ser humano". Eu acredito que os sonhos algum dia, com muita esperança se realizam. É só esperar...
Beijinho
Isabel
Olá, Isabel
Muito obrigado pela sua visita e pelas suas palavras sempre sensatas, tranquilizantes, bonitas...
Beijinho
António
Bem retratado o sonho e o acabar do sonho...mas será que ele acaba?! Eu acredito que não. O sonho continua para além da realidade. Beijos.
Paula
Obrigado pela visita e pelos sonhos.
"O sonho não é a ante-câmara da morte" ?
Pois eu acredito -sou espiritualista - que continuaremos a sonhar para além disso.
Beijinho
António
António, este poema é dos mais lindos que já li seus (apesar de longo).
Transporta-nos para a cena, faz-nos sentir o mesmo que sentiu.
É muito, mas mesmo muito bom!
Quanto ao resto... "mais vale arrependermo-nos do que fizemos, do que daquilo que não fizemos".
Beijinhos
Helena
Helena
Como deve ter reparado tenho tido comentários tão lindos de poetisas com obras publicadas, duas delas brasileiras.
Hoje obtive "um milagre", vindo de Fátima.
Beijinhos
António
Postar um comentário