Texto publicado em Março de 2002, no extinto JORNAL DA CHAMUSCA
Não querendo meter a foice em seara alheia, ou seja, escrever sobre política, lembrei-me, contudo, duma frase que desde há muitos anos retive na memória: "A vida é um acto político!" Durante a campanha eleitoral para as Legislativas de 2002 ouvi com indignação, preocupação e tristeza apelos à discriminação racial...O texto que escolhi para a "Janela Aberta" deste mês faz parte dos meus últimos Contos da Guerra Colonial, situados obviamente já no período pós 25 de Abril de 1974.
Um Negro Bué da Fixe
Acto I (Único)
Aquela soalheira manhã de Abril do ano de 1990 iluminava e aquecia um cenário deslumbrante: uma magnífica vivenda situada numa das zonas residenciais mais ricas de Lisboa. Um rapaz acompanhado da sua irmã, ambos mulatos, encontravam-se ali parados com o olhar fixo e esbugalhado à beira do enorme e imponente portão verde com lanças douradas a apontarem para o céu tão azul, o qual se ia abrindo lenta e automaticamente pondo a descoberto, preparando-se para saírem, dois rapazes altos, louros e de olhos azuis, montados num motociclo de grande porte e alta cilindrada: uma Goldwing. Já em andamento iam apertando com destreza os capacetes de boa e reconhecida marca, complementando o reluzente vestuário preto de cabedal genuíno. Aqueles "meninos" detiveram repentinamente o motão antes de transporem para o exterior da sua fortaleza relvada com piscina ao fundo. O que segurava o guiador e que aparentava ser o de mais idade apressou-se a retirar o capacete que havia enfiado um minuto antes e dirigiu-se verbal e agressivamente para aquele casal de mulatos que não arredavam pé.
Menino rico: - Oh escarumas do caraças, andam aqui no gamanço? Vá, bazem daqui p'ra fora! Ou querem levar um balázio na mona? Fiz-me entender?
Mulato: - Calma, meu! Estás a precipitar-te! Podemos ser "blacks" mas somos pessoas bué da fixes e estamos aqui numa boa! Estávamos apenas a apreciar este espectáculo de vivenda, mano!
Menino rico: - Mano o diabo que te carregue!
Mulato: - Esta bacana aqui é minha irmã, meu! É a Laurinha! Só viemos aqui p'ra conhecer o palácio do senhor doutor juíz Junqueira. Esta mansão não é do doutor Junqueira?
Menino rico: - Limpa a merda da tua bocarra quando pronunciares o nome do meu pai, ok? Mas afinal que sabes tu acerca do meu velho? Qual é a tua, meu?
Entretanto, um indivíduo quarentão, impecavelmente "arreado" de fato e gravata e mala preta na mão esquerda entrou e sentou-se ao volante dum metalizado e potente Volvo. Ao aproximar-se do portão travou violentamente, saindo apressado da esplendorosa viatura e dirigindo-se para a frente da mota, como que tentando proteger as suas crias irrequietas e mal-educadas. Manifestava algum nervosismo e enquanto ia esticando os punhos da camisa e deixando vislumbrar os botões de prata artisticamente trabalhados foi-se aquietando, acabando por ficar estático...
Senhor doutor: - Filhos, o que é que se passa aqui? Qual o motivo da discussão?
Menino rico: - Ora, velhote, são estes blacks das barracas que encontrámos aqui ao portão, sabe-se lá com que intenções!...
Senhor doutor: - Meninos, por favor não molestem essas pobres criaturas!
O senhor doutor, entretanto, deu alguns passos decididos em direcção ao portão, parou repentinamente, fixou o rapaz mulato, inclinou a cabeça para a esquerda, franziu o sobrolho e com a ponta dos dedos da mão direita coçou demoradamente a cabeça.
Senhor doutor: - Diz-me, rapaz, tu por acaso és angolano? Caramba!... Ia jurar que...sim, a tua fisionomia não me é de todo estranha!
Menino rico: - Paizinho, não dês confiança a essa gente. Podem ser perigosos. Se calhar são alguém que já julgaste e condenaste...Cuidado! O melhor é chamar a bófia. Não vês que os atrevidos não desandam?
Senhor doutor: - Calma, calma, filho! Deixa isso comigo!
O rapaz mulato tirou calmamente do bolso do blusão um maço de cigarros e um isqueiro Zippo e, numa atitude premeditada de demonstração de delicadeza, pediu, com um gesto, autorização para fumar, ao que o seu interlocutor acenou positivamente. O rapaz soprou o fumo demoradamente para o alto enquanto o juíz, petrificado, foi deslizando o olhar ora para o mulato ora para a sua irmã.
Mulato: - O senhor doutor juíz Junqueira era alferes...Lembra-se de Sanza Pombo?...Recorda-se duma mulher negra muito linda chamada Laura?
Senhor doutor: - Tu, rapaz, és natural de Angola? De Sanza Pombo? Ai meu Deus, é isso...é isso...Mas afinal que sabes tu da Laura? Que sabes tu a meu respeito? Tu és parecido...pois...tão parecido! Meu Deus, não me digas que...
Mulata: - Força, João, acaba lá com esta treta! Vá lá, João Junqueira, diz a verdade ao senhor! Que tens tu a perder? Afinal, só o queres conhecer, não vens pedir népia ao ricalhaço!
Mulato: - Sim, foi-me dado o seu nome. A minha mãe Laura morreu de parto na sua segunda gestação: era uma menina. É esta aqui, a Laurinha! Eu fui o primeiro... Não quero nada seu, não!
Tenho noção da realidade e nunca sonhei "sujar" a piscina desses aí que quer queiram quer não são meus irmãos. Só quis conhecer, ao fim de muitos anos, aquele que me disseram ter sido o grande amor de Laura. Eu...eu afinal sou apenas um filho escuro daquela maldita guerra, não é, doutor?
O rapaz mulato agarrou firmemente no braço da irmã, puxando-a para si, enquanto que com a outra mão apanhou do chão, onde haviam permanecido encostados ao muro, dois capacetes muito usados e impressionantemente riscados. Dirigiram-se os dois para uma motorizada sem guarda-lamas: uma DT 50 que havia ficado a uns metros de distância, inclinada para o passeio e sustentada nele apenas com o pousa-pés direito. Enquanto se foram afastando, o rapaz mulato, com a base do capacete apoiada na testa, virou-se de repente para trás, apontou o dedo indicador direito ao menino rico e num tom de voz elevado e embargado, disse-lhe: - Lembra-te sempre, "betinho", preto não é ladrão, por vezes até pode mesmo ser irmão!!!
Aquela motorizada pegou de empurrão, o punho do acelerador foi bruscamente rodado até ao empanque, a "manete" da embraiagem largada repentinamente, dando origem a um brusco, barulhento e aterrador arranque, numa derrapagem em semi-círculo, seguido de um "cavalinho", a caminho dum qualquer bairro de renda social algures nos subúrbios da capital, outrora latifúndio suburbano e hoje depósito disperso dos filhos incógnitos daquela prolongada guerra...